PT/EN

O início do século XX em Portugal coincide com o aparecimento das primeiras revistas especializadas nas áreas da arquitectura e construção, que visavam  não só transmitir conhecimentos estéticos, técnicos e científicos mas também  contribuir para a definição de competências e atribuições dos vários grupos profissionais vinculados à edificação. A Construcção Moderna e A Architectura Portuguesa constituir-se-iam como as publicações mais significativas1 dentro do contexto de transformação que iria conduzir à implantação da Primeira  República.  A análise dos seus conteúdos textuais e iconográficos permite afirmar que veiculavam alguns dos princípios doutrinários do ideário republicano  corporizados nos protagonistas da geração de 1890. Estas publicações assumir-se-iam, pois, como instrumentos activos de divulgação de conhecimentos que visavam concorrer para o progresso material e técnico do país. Ao difundirem novos programas e tipologias — com destaque para os edifícios escolares2 —, ao promoverem o debate em torno do património monumental3 e da necessidade da sua salvaguarda4, ao discutirem os rumos  da arquitectura nacional5 e ao divulgarem artigos de opinião sobre higiene e salubridade urbanas,6 antecipariam as preocupações que, de alguma forma,  irão ser pedras de toque do programa político da Primeira República.  

A Construcção Moderna : Revista Quinzenal Ilustrada Sob a Direcção de um grupo de Constructores : Collaborada por Distinctos Technicos da Especialidade seria a primeira publicação periódica portuguesa dedicada à arquitectura e à construção, procurando agregar arquitectos e outros agentes  da edificação:

 

o architecto, o engenheiro, o artista, o constructor, teem na orientação que marcámos, vasto campo utilitário onde possa incidir a sua actividade e estudo, e por esse motivo, não agruppando a nossa publicação no campo absolutamente material e interesseiro dos que buscam directa e immediatamente lhes aproveite, procuramos, sem desatender esse facto, torna--la como que o inventario patriótico dos nossos progressos technicos- artísticos.7

 

 

O projecto editorial que se desenvolveu entre 1 de Fevereiro de 1900 e 25 de Julho de 19198 reflecte, de forma inequívoca, o alinhamento com os pressupostos e linhas programáticas das revistas europeias especializadas9.

A primeira fase da revista correspondente aos três primeiros anos de publicação; manifesta, ainda, alguma indefinição no que respeita à constituição do programa e da composição da direcção, contudo, a análise dos editoriais permite concluir que estão subjacentes dois objectivos fundamentais: a transmissão de conhecimentos técnicos (processos construtivos, materiais, etc.)10 e a divulgação dos equipamentos indispensáveis ao modo de vida moderno.

O dinamismo da publicação deve-se particularmente ao perfil da direcção  técnica  formada pelo engenheiro civil  José Maria de Mello de Mattos (1856-1915) e pelo arquitecto Rosendo Carvalheira (1863-1919). O primeiro  constituir-se-á como figura central da publicação, quer pela coordenação da revista, particularmente durante os dez primeiros anos11, quer pela sua intensa colaboração como articulista (textos, recensões e crónicas da actualidade nacional e internacional). O seu projecto editorial visava a divulgação científica e a transmissão de saberes técnicos, encarados como pilares de um programa que procurava responder, de forma eficaz, às necessidades materiais e estéticas de uma sociedade em processo de mudança. Apesar de se poder afirmar que Mello de Mattos defenderá, inequivocamente, a causa da engenharia12, não deixará, no entanto, de promover o debate pluridisciplinar  em torno das principais questões colocadas pela arquitectura e urbanismo modernos, em que arquitectos, engenheiros, condutores de obras, entre outros, eram chamados a intervir através da aplicação de processos e métodos de edificação requeridos pelas transformações impostas pela civilização industrial. 

Esta aliança concederia à revista uma diversidade de abordagens que, porque complementares, iriam contribuir para a consagração dos profissionais da construção, particularmente dos arquitectos13, e para a difusão dos novos equipamentos públicos: arquitectura comercial (armazéns, cafés) e financeira (edifícios bancários), hospitalar e assistencial (hospitais, sanatórios, asilos), edifícios escolares (escolas primárias, liceus e escolas industriais), de lazer (teatros, casinos) industrial (unidades fabris) fazem parte do catálogo tipológico divulgado por A Construcção Moderna. Contudo, a categoria mais representada é a da arquitectura doméstica, abrangendo cerca de dois terços do total dos projectos publicados14. A presença dominante de edifícios residenciais (moradias, chalets, palacetes, e edifícios de habitação plurifamiliar) inscreve-se no processo de expansão dos centros urbanos, particularmente da capital,15 bem como da colonização do litoral16.

Deve sublinhar-se o comprometimento desta revista no processo de legitimação corporativa e profissional da classe dos arquitectos, ao publicar nas suas páginas os documentos inaugurais da Sociedade dos Arquitectos Portugueses17. Dentro do mesmo propósito, deve referir-se o destaque dado aos concursos académicos18 como meio de validação e dignificação do ensino da arquitectura e dos conteúdos das novas metodologias de projecto. A competência técnica e artística dos jovens arquitectos é reforçada pela exibição de exercícios escolares qualificados, directamente vinculados aos novos programas e tipologias — estações de caminho-de-ferro, museus, casinos, circos equestres e ginásticos, panteões, teatros, escolas e edifícios de habitação — celebram de forma explícita os novos valores da arquitectura. A mesma vontade de estender a discussão e debate manifesta-se na divulgação de concursos públicos19, assumindo particular importância o Prémio Valmor20. A publicação de regulamentos21, da constituição de júris22 e a exibição de resultados23  permite que A Construcção Moderna se assuma simultaneamente como instrumento crítico e como elo entre os profissionais e a opinião pública.  

Em Janeiro de 190824, é editado o primeiro número da revista A Architectura Portuguesa : Revista mensal de Arte Architectural Antiga e Moderna : Collaborada por architectos e escriptores d’arte portuguezes25, cuja orientação se revela  diversa da publicação anterior26. Ao contrário d’A Construcção Moderna que assentava num programa de difusão abrangente e multidisciplinar, A Architectura Portuguesa assume-se como revista especializada de arquitectura,  reivindicando outro estatuto e, por inerência, um outro público alvo. A política editorial desta publicação privilegiaria parâmetros de qualidade gráfica (formato e papel couché) e crítica, explícitos em artigos assinados por autores consagrados; Abel Botelho (1855-1917), Gabriel Pereira (1847-
-1911), Ramalho Ortigão (1839-1915), Rosendo Carvalheira, entre outros, são alguns dos nomes de entre os múltiplos colaboradores que figuram nas páginas da revista. Também a escolha dos projectos publicados
27 obedeceria a critérios de selecção pautados pelo perfil dos arquitectos — José Luís Monteiro (1848-1942), Miguel Ventura Terra (1866-1919), Álvaro Machado (1874-1944), Norte Júnior (1878-1962), entre outros — e também pelo valor cenográfico dos edifícios com particular destaque para a arquitectura doméstica  construída  em Lisboa e nos Estoris28, consagrando a fotografia como veículo privilegiado de representação. Um dos objectivos desta revista era o de contribuir para melhorar as formas de gosto dos portugueses e, nesse sentido, divulgava  obras de referência como instrumentos de acção propagandística em função  do novo imaginário formal, funcional e estético:

 

Cabe á architectura abrir ao juizo e ao gosto artistico da sociedade contemporânea uma era nova. [...] há hoje em Portugal, pensando e trabalhando activamente, honestos architectos de alta capacidade e grande talento. Há também em Lisboa e nos seus arredores casas de luxo, que constituem lição preciosa em que todos podem aprender o modo como não se deve edificar.29  

 

A mudança de regime não foi tangível nas páginas destas duas publicações. A análise dos editoriais desse período, bem como dos conteúdos dos artigos não  acusam alterações sensíveis. Tão pouco, se manifestaram variações de critério relativamente ao leque de autores ou de projectos divulgados. Essa opacidade decorre certamente do facto de os seus protagonistas (editor, directores, equipas redactoriais e colaboradores) terem atempadamente defendido uma cruzada em favor da modernização do país, criando as condições concretas  para a afirmação e dignificação dos profissionais da construção (arquitectos, engenheiros, condutores de obras, entre outros).

Estas publicações abririam efectivamente o caminho para a sensibilização da opinião pública sobre a importância da arquitectura como instrumento  consagrador de uma nova ordem que encerrava nos seus pressupostos os valores republicanos.

 

 

[1] O Annuario da Sociedade dos Architectos  Portugueses: Associação de Classe publicado entre 1905 e 1911 constituir-se-ia como a publicação corporativa por excelência.

[2] Em A Construcção Moderna serão publicados 15 projectos de edifícios de ensino (ensino primário, liceal e industrial), correspondentes ao período total da publicação. Entre 1 de Fevereiro de 1900 e 5 de Outubro de 1910 serão apresentados sete projectos de arquitectura escolar (duas escolas primárias, dois liceus, dois colégios e um edifício para um curso livre de Belas Artes). Entre 1911 e 1919 a revista divulgará oito  projectos (sete projectos de escolas primárias e uma escola industrial).

[3] A Sociedade de Propaganda de Portugal, fundada em 28 de Fevereiro de 1906, encontrará nas páginas d’A Construcção Moderna o seu veículo privilegiado de difusão.

[4] Os artigos de Rosendo Carvalheira no domínio do restauro materializam, de forma exemplar, essas questões. V., a esse respeito: Memória sobre a Sé Catedral da Guarda e sua possível restauração. A Construcção Moderna. Ano I, nº1 (1 Fev. 1900), p. 7; nº2 (16 Fev. 1900), p. 5; nº3 (1 Mar. 1900), p. 4-5;  nº4 (16 Mar. 1900), p. 5-6; e A evolução da arte e a tradição dos povos. A Construcção Moderna. Ano I, nº4 (16 Mar. 1900), p. 5-8; nº8 (16 Maio 1900), p. 5-6; nº9 (1 Jun. 1900), p. 4-5;  nº10 (16 Jun. 1900), p.4; nº11 (1 Jul. 1900), p. 5-6; nº12 (6 Jul. 1900) p. 4-5.  

[5] Nesta categoria, devem referir-se múltiplos contributos de autores em torno da problemática da Casa Portuguesa, com destaque para textos de Rocha Peixoto, Abel Botelho e J. Mello de Mattos, entre outros.  

[6] A premência de melhorar as condições higié-
nicas e sanitárias das cidades percorre as páginas de A Construcção Moderna, sob a forma de artigos de opinião, recensões críticas, textos técnicos e documentos normativos. Esta preocupação, que se revela desde o início desta publicação, irá, no entanto, abrandar a partir de 1911. Cf. Marieta Dá Mesquita; Inês Serrano. A leitura da cidade pelos seus contemporâneos. Arte e Teoria. Nº 10 (2007), p. 67-81.

[7] A Construcção Moderna, Ano I, nº 25 (1 Fev. 1901 ), p. 3-4.

[8] Não obstante a regra ser a da regularidade, a revista passou por alguns períodos de curta duração em que foi suspensa. Entre os fascículos nºs 337 (5 Jan. 1911) e 414 (25 Abr. 1914) passou a designar-se A Construcção Moderna e As Artes do Metal pelo facto de o editor e  proprietário d’A Construcção Moderna, e também da revista As Artes do Metal,  ter procedido à fusão das duas publicações.

[9] Na genealogia desta revista podem referir-se várias publicações internacionais como: The Builder (1843-1966), Le Bâtiment (1864-1945), Le Génie Civil (1880-1973), La Construction Moderne (1885-1889), entre outras.

[10] A importância atribuída aos novos materiais e processos construtivos assume um papel qualitativo e quantitativo no conjunto de textos publicados, quase na sua totalidade da autoria de engenheiros.

[11] Quando em 1911 se formaliza a fusão entre A Construcção Moderna e As Artes do Metal, por decisão de Nunes Collares (1850-1928), editor e proprietário das duas revistas, Mello de Mattos continuará a assumir a função formal de director técnico, mas afastar-se-á  da sua orientação editorial.

[12] V. Marieta Dá Mesquita. As casas de muitos andares nos Estados Unidos ou a Escola de Chicago vista por um engenheiro português em 1900. Jornal Arquitectos. Nº 205 (Mar./Abr. 2002), p. 11-18.

[13] Em primeiro lugar, deve sublinhar-se a supremacia dos arquitectos como autores mais representados. Apesar de não se tratar de uma revista de tendência de critérios ortodoxos e unidireccionais, validava explicitamente os projectistas de formação académica e estrangeirada.

[14] V. Marieta Dá Mesquita. Uma leitura do património através de uma revista de arquitectura do primeiro quartel do século XX. Disegnarecon. Vol. 1, nº 2 (Dic. 2008). E Roberto Mingucci; Mario Centofanti (a cura). Disegnarecon: Conservazione del Patrimonio Architettonico e Urbano. [Em linha]. (Dic. 2008) [Consult. 2 Fev. 2011]. Disponível em http://disegnarecon.cib.unibo.it/article/view/1381/831.

[15] O espectro da revista é abrangente apresentando  projectos que se destinavam a várias zonas do País, mas concentra-se inequivocamente na cidade de Lisboa (45 por cento) e na sua área envolvente (19 por cento).

[16] V. Patricia Duarte. Casas de Verão entre Belém e Cascais: uma leitura sobre a arquitectura do lazer através da Construcção Moderna. Lisboa : FA/UTL, 2008. Dissertação de Mestrado em Estudos do Espaço e do Habitar em Arquitectura; texto policopiado.

[17] V. Associação de Classe dos Architectos Portugueses. A Construcção Moderna. Ano 2, nº 45 (1 Fev. 1901), p. 8; Sociedade dos Architectos: Associação de Classe. A Construcção Moderna. Ano 2, nº 46 (16 Dez. 1901), p. 5-6; Sociedade dos Architectos Portugueses. A Construcção Moderna. Ano 4, nº 88 (1 Mar. 1903), p. 8-9; A Construcção Moderna. Ano 3, nº 106 (1 Set. 1903), p.172-174; Regulamento dos honorários dos architectos. A Construcção Moderna. Ano 6, nº 160 (20 Mar. 1905), p. 32.

[18] V., a título de exemplo: Projecto de um museu de escultura. A Construcção Moderna. Ano 2, nº 39 (1 Set. 1901). Primeiro prémio da Exposição Nacional de Belas Artes.

[19] “Termina no dia 15 do corrente, o praso do concurso para apresentação da egreja-monumento à Immaculada Conceição. Pelo que sabemos, o concurso deve ser o maior que no paiz se tem feito, não só pelo numero de concorrentes, como também pela importância dos trabalhos. Ao que nos conta até agora, concorrem os seguintes senhores, que vão mencionados por ordem alphabetica. Adaes Bermudes, Adolpho Marques da Silva, Alfredo Maria Costa Campos, Álvaro Machado, António Peres Dias Guimarães, Carlos Parente, Frederico Evaristo Gomes, Hermogenes Julio dos Reis, Joaquim Norte, José C. Ferreira da Costa, Pedro Machado, Raul Lino, Tertuliano Lacerda Marques.” A Construcção Moderna. Ano 5, nº 148 (1 Nov. 1904), p. 219.

[20] V. a titulo de exemplo: Casa que obteve o premio Valmor em 1903. A Construcção Moderna. Ano 5, nº 135 (20 Jun. 1904); Casa de artista. A Construcção Moderna. Ano 6, nº 157 (10 Fev. 1905). 

[21] V., a título de exemplo: Concurso entre Arquitectos Nacionaes: Programa. A Construcção Moderna. Ano 5, nº 137 (10/07/1906), p. 131-132.

[22] “Concurso Para o Projecto da Egreja-Monumento A’ Immaculada Conceição — […] do jury que reúne brevemente, consta-nos que farão parte os srs. José Alexandre Soares, Ventura Terra, José Luís Monteiro e Rosendo Carvalheira.” A Construcção Moderna. Ano 5, nº 149 (10 Nov. 1904), p. 229

[23] A propósito dos resultados do Concurso público para o monumento ao Marquês de Pombal A Construcção Moderna afirmaria: “Por dever, em primeiro lugar, porque devemos deixar arquivado nestas colunas, tudo o que a respeito de arte arquitetonica se produzir no nosso meio publicámos hoje as gravuras das maquettes que obtiveram o primeiro e o segundo premio […] O que entendemos apenas frisar, é que desde que se nomeou um juri que aceitou o encargo.“ A Construcção Moderna. Ano 14, nº 420 (25 Jun. 1914), p. 2.

[24] A 1ª série da revista decorre entre 1908 e 1928 ainda que se possam observar mudanças programáticas a  partir de 1915.   

[25] Mário Collares  e Antonio da Silva Junior assumiriam as funções de directores entre Janeiro e Maio de 1908.

[26] Nunes Collares é simultaneamente proprietário das duas publicações e defende para cada uma delas um projecto editorial diferente e necessariamente destinado a um público distinto. 

[27] A análise comparativa dos projectos publicados nas duas revistas permite afirmar que existem muitas sobreposições entre os projectos publicados, mas, no entanto, A Architectura Portuguesa excluirá das suas páginas as obras consideradas correntes.

[28] Podem referir-se, a título de exemplo: Palacete do sr. Alexandre Nunes Sequeira. A Architectura Portuguesa. (Jan. 1918) e Casa de estilização românica modernizado, da autoria de Edmundo Tavares. A Architectura Portuguesa. (Mar. 1919). 

[29] Ramalho Ortigão. Prefácio. A Architectura Portuguesa. Ano 1, nº 1, Jan. de 1908, p. 2.


VER destaque #234
VER destaque #235
VER Imagens de Portugal #238
VER ensaio 1 #239
VER ensaio 2 #239
VER meio ensaio #239
VER livro 4 #239
VER destaque #242
VER entrevista 1 #242
VER entrevista 2 #242
VER projecto 6 #242
VER projecto 7 #242
VER Call for Papers #242
VER projecto 9 #242
VER projecto 8 #242
VER projecto 10 #242
VER projecto 11 #242
VER ensaio #243
VER opinião 1 #243
VER opinião 2 #243
VER opinião 3 #243
VER opinião 4 #243
VER opinião 5 #243
VER opinião 6 #243
VER opinião 7 #243
VER Call for Papers 1 #243
VER Call for papers 2 #243
VER projecto 6 #244
VER Três Ensaios (um) #244
VER Três Ensaios (dois) #244
VER Três Ensaios (três) #244
VER Homenagem I #244
VER Homenagem II #244
 FOLHEAR REVISTA